27/10/2007

D. Anica


D. Anica, mulher dos seus 50 anos, levanta-se e rapidamente se cobre com um robe vermelho. Neva lá fora.

D. Anica retira uma chávena e despeja lá dentro um pouco de café frio. A cara está deformada de tanto chorar na noite anterior. As mãos tremem e limpam instintivamente o nariz a fumegar. A pele está roxa e as rugas encontram-se ainda mais acentuadas.

Liga a televisão. Um documentário sobre corvos passa no canal que a viúva mais odeia. Uma inquietude fá-la levantar-se e sentar-se vezes sem conta, até que se dirige para o quarto.

O marido jaz entre os lençóis, com uma grande faca a penetrar-lhe o ventre. D. Anica, ainda horrorizada com a imagem, retira o facalhão do corpo morto, e deita-se ao lado deste, esfregando as mãos no sangue ainda fresco, entre lágrimas.

- Estás tão pálido… Tens uma expressão tão calma… - sussurra soluçando, e beija-lhe os lábios ensanguentados.

Com um grande esforço, D. Anica agarra o homem pelas pernas e puxa-o até à rua, onde a neve queima os pés descalços da assassina. Em pouco tempo o branco macio tinge-se de encarnado.

Um pequeno grupo de pessoas vislumbra o espectáculo com horror, todavia, incapaz de pronunciar somente uma palavra.

- Vejam! Vejam a minha obra! – brada D. Anica, desesperadamente louca, enfurecida, completamente dominada pela raiva.

A multidão recua dois passos, impotente para tomar uma atitude. A viúva tosse e cospe sangue, limpando a boca com a parte lisa da grande faca ferida, ainda colada ao seu punho feroz.

- Cá está ele deitado, vejam-no morto! Eu erguida e ele aqui, deitado, tal como estava ontem no meu leito! Parece tão inocente!... – grita D. Anica.

Começam então a surgir murmúrios, zumbidos, sussurros. Mais gente se ia aproximando do semi-círculo negro. Um jovem não podia mais assistir àquilo. Num acto de bravura, enterra as botas na neve em direcção à louca.

- Eu vou ligar para a polícia. – afirma, tentando fingir uma voz segura.

A assassina quase que salta para cima dele e roça-lhe o facalhão no pescoço:

- Fazes isso e mato-te!

- N-não… - gaguejou. – Porque está a fazer isto, senhora?

Com esta pergunta, D. Anica cai de joelhos juntamente com a sua arma, morde as mãos até fazerem sangue, prepara-se para falar, hesita, tosse mais um pouco de sangue e murmura entre soluços:

- Ele não me amava… Nunca me amou!!! Trinta anos sem ouvir um “amo-te”… - a voz torna-se mais clara. – Grandes males, grandes remédios!

- Se… Se você o amasse não teria feito isto… - balbucia o jovem, num misto de emoções, comovido pela vagarosa fala da mulher.

- Foi por amor que fiz isto. Odeio-o por nunca me ter amado… E agora? Matei-o!

Algumas pessoas lá longe ligam para as autoridades.

- Ele não podia continuar mais aqui!!! – concluiu.

- Minha senhora… A senhora não está bem… - declarou o jovem, perdendo qualquer rasto de medo, familiarizando-se com aquela personagem, ganhando até um pouco de compaixão.

A polícia chegou pouco tempo depois. D. Anica não ofereceu qualquer tipo de resistência, estava transtornada. Algemaram-na e meteram-na dentro de um veículo.

- No que tu me transformaste… - disse D. Anica baixinho, antes de se calar para sempre.

2 comentários:

Anónimo disse...

Depois de ler este conto e de ver, mais uma vez a fotografias, tive uma ideia... Se por acaso der luz, informo-te.

Um beijinho
deixado num rasto Azul.

Anónimo disse...

Tive uma ideia... não sei se dará luz.
Se houver novidade digo-te.

um beijinho,
deixado em voo azul.